Entre homenagens e silêncio: a visão dos grupos evangélicos sobre o papa Francisco

“O papa é um hipócrita e envergonha os católicos.” No fim de 2023, o pastor Silas Malafaia, líder evangélico da Assembleia de Deus, lançou declarações furiosas contra o papa Francisco depois que o Vaticano permitiu, pela primeira vez, que padres concedessem a bênção a casais homossexuais.

“Onde no cristianismo, em nome do amor, tem licença para pecar ou abençoar práticas pecaminosas? Em lugar nenhum”, disse Malafaia naquela época, em um vídeo publicado em suas redes sociais.

Embora a decisão não tenha mudado a doutrina sobre o casamento na igreja, a mudança, aprovada pelo papa Francisco, foi uma das tantas que enfureceram líderes religiosos mais conservadores. E trouxe mais complexidade para o debate sobre a visão dos diferentes grupos evangélicos sobre o papa.

Nesta semana, algumas das lideranças evangélicas mais proeminentes, como o bispo Edir Macedo, da Igreja Universal do Reino de Deus, o pastor-presidente da Lagoinha, André Valadão, e o próprio Malafaia silenciaram diante da notícia da morte do papa.

Ao mesmo tempo, outros líderes, como o apóstolo Estevam Hernandes, da Igreja Renascer em Cristo, e o pastor Davi Lago, da Primeira Igreja Batista de São Paulo, prestaram suas homenagens ao líder maior da Igreja Católica, que morreu na segunda-feira (21).

“Independentemente de crença ou denominação, reconhecemos que o papa Francisco foi um grande homem de Deus, cuja vida foi marcada pelo amor ao próximo, pela defesa da justiça, da paz e da dignidade humana”, publicou o apóstolo Estevam Hernandes em sua conta no Instagram.


O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que divergiu do papa quando Francisco publicou um texto em defesa “de uma Amazônia que lute pelo direito dos mais pobres”, prestou sua homenagem em uma rede social, assim como a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro, que é evangélica.


“Mais que um líder religioso, o papado representa a continuidade de uma tradição milenar, guardiã de valores espirituais que moldaram civilizações”, escreveu o ex-presidente na rede social X.


Bolsonaro é católico, mas estreitou seus laços com a comunidade e lideranças evangélicas em sua campanha à Presidência e seu governo e chegou a ser batizado no rio Jordão, em Israel, pelo pastor Everaldo, da Assembleia de Deus.


“Essa é uma oportunidade para notar como esse campo é múltiplo”, afirma o antropólogo Juliano Spyer, autor dos livros “Crentes e Povo de Deus”.


Spyer diz ser difícil dizer qual a opinião dos evangélicos sobre o papa Francisco, dado que o espectro religioso é vasto. “É um campo muito mais diverso do que a gente está acostumado a achar.”


Ainda assim, ao longo do seu papado, Francisco acenou em algumas direções que ajudam a explicar a sua relação com esses distintos grupos evangélicos, que estão em expansão e, juntos, representam quase um terço (31%) da população brasileira, segundo levantamento de 2020 do Datafolha.


Dados do último Censo, de 2010, mostraram que, enquanto a parcela de evangélicos está crescendo, a de católicos vem diminuindo, embora os católicos ainda sejam franca maioria — eram metade dos brasileiros, segundo o Datafolha.


Especialistas apontam que um fenômeno está ligado ao outro e que o catolicismo tem perdido fieis para as igrejas evangélicas.


A expectativa é que essa tendência tenha se mantido nos últimos anos. Os dados do último Censo sobre o perfil religioso da população brasileira devem ser divulgado em junho.


Papa de esquerda?


Uma característica associada a Francisco antes mesmo de ele se tornar papa é sua identificação com uma corrente da Igreja Católica com forte cunho social.


“O papa Francisco representa uma perspectiva teológica vista por uma parte dos evangélicos com muita desconfiança, que é Teologia da Libertação”, afirma Kenner Terra, pastor da Igreja Batista de Água Branca, doutor em ciências da religião, e uma das lideranças religiosas que prestaram homenagem ao papa.


Surgida na segunda metade do século passado na América Latina, a Teologia da Libertação é baseada na defesa da libertação de grupos sociais oprimidos. No Brasil, um dos seus maiores expoentes é o teólogo Leonardo Boff.


Sua afinidade teológica, diz o pastor Kenner, o levou a ser visto como um papa de esquerda por parte dos evangélicos conservadores, que se afastaram de Francisco.


Ao mesmo tempo, o pastor acredita que a postura do papa também pode servir de inspiração: “Ele deu uma grande lição de humildade e desprendimento e isso é uma provocação interessante para nós evangélicos, que temos testemunhado alguns excessos que tanto nos envergonham”.


Spyer lembra que pesa também nessa discussão o histórico da relação.


“Essa relação entre católicos e protestantes foi forjada durante muitos séculos. Não é só um outro grupo religioso, é um grupo religioso que por muito tempo era visto como opositor, inimigo”, diz o antropólogo.


O pastor Samuel Vitalino, líder da Igreja Esperança BPC (Bible Presbyterian Church), em Orlando, afirma que, desde o surgimento das igrejas reformadas, ou seja, quando a Reforma Protestante rompeu com o catolicismo, no século 16, que a figura do papa não é reconhecida por muitos dos reformados.


“O nosso problema não é com a pessoa, mas com aquilo que ele representava”, afirma o pastor.


“Cristo só tem um e nós honramos e adoramos somente essa pessoa que é Cristo.”


Isso não significa que a morte de Francisco não tenha sido lamentada, segundo o pastor: “A gente lamenta a morte do papa como um ser humano. Mas não porque ele era o papa”.


Talvez por essa diferença histórica, Francisco tenha trabalhado ao longo do seu papado no intuito de estabelecer uma relação com os grupos evangélicos, segundo afirma Syper.


“Uma coisa curiosa do Francisco é o quanto ele trabalhou para estabelecer uma relação com alguns grupos evangélicos”, diz.


“Se alguns evangélicos estão fazendo homenagens para ele agora, isso é reflexo também das ações de Francisco.”


De fato, Francisco acenou aos evangélicos ao longo dos últimos anos: realizou um encontro com o pastor italiano Giovani Trentini, e recebeu no Vaticano o bispo Abner Ferreira, filho do pastor Manoel Ferreira, o líder maior da Assembleia de Deus de Madureira.


“Foram alguns acenos, principalmente aos pentecostais”, diz o pastor Kenner, sobre o ramo do protestantismo do qual fazem parte algumas das maiores igrejas evangélicas hoje, como Universal e Assembleia de Deus, sendo a maioria entre os evangélicos.


Figura ‘ambígua’


Mas, ao mesmo tempo que acenava para alguns grupos evangélicos, o papa desagradava outros, tidos como mais conservadores.


“Eu brincava com alguns amigos católicos que o papa Francisco era o melhor papa que eu já vi, porque ele foi tão para a esquerda, que muitos dos meus amigos católicos romanos começaram a colocar uma pulga atrás da orelha com a entidade papal”, afirma o pastor Samuel Vitalino.


“Eles mesmos começaram a discordar de algumas posturas do papa Francisco.”


O pastor Kenner Terra afirma que a “desconfiança” em relação ao papa ocorria entre os mais “radicais”.


Mas ele lembra, no entanto, que Francisco tinha uma postura “ambígua”. “Ele relativiza a questão homossexual, dizendo que a homossexualidade é um pecado [ao mesmo tempo que aprova a benção aos casais homossexuais] e isso atraiu parte dos conservadores evangélicos. Ele produz reações múltiplas.”


Embora Francisco fosse tido como um papa progressista, seus acenos não tiveram o poder de promover grandes rupturas na igreja, como o já mencionado caso das bênçãos aos homossexuais.


Em um documento assinado por Francisco, em 2024, chamado Dignitas Infinita (Dignidade Infinita, na tradução livre), o Vaticano reiterou sua oposição à cirurgia de redesignação sexual, à ideologia de gênero, à barriga de aluguel, ao aborto e à eutanásia.


No documento, o aborto é definido como uma “crise extremamente perigosa do senso moral”, e a barriga de aluguel é uma “violação” tanto para a mulher, como para a criança.


O texto destacou também que o sexo atribuído a uma pessoa ao nascer é uma dádiva — e qualquer tentativa de mudá-lo corre o risco de cair “na tentação de se fazer de Deus”.


Antes disso, Francisco já havia classificado a prática da barriga de aluguel como “desprezível” e a chamada ideologia de gênero, linha de pensamento que desafia a ideia de que a sexualidade humana é determinada pela biologia, como “uma ideologia feia”.


Mas, em 2023, além da permissão para as bençãos a casais do mesmo sexo, Francisco também disse que as pessoas trans poderiam ser batizadas na Igreja Católica, desde que isso não causasse escândalo ou “confusão”.


“Ele só podia ir até onde a janela de honra permitia que ele fosse. Ele acenava, mas não podia mudar a estrutura da igreja”, diz o pastor Samuel Vitalino.


Para o pastor, muitos dos ideais de Francisco não tinham respaldo na Bíblia: “Ele tinha adoração pelas pessoas, sem dúvida alguma. Mas muito daquilo que era bom, sob o ponto de vista do coração dele, não tinha necessariamente um aparato bíblico. E a Bíblia é a palavra de Deus”.


A pluralidade de opiniões sobre o papa entre os diferentes grupos evangélicos também se reflete na expectativa — ou não — sobre quem será o próximo chefe do Vaticano.


“Esperamos que o próximo papa dê continuidade a algumas conquistas que o papa Francisco trouxe”, afirma o pastor Kenner.


Já para o pastor Samuel Vitalino, “não faz diferença” quem será o próximo papa. “Sei que os mais conservadores e os mais liberais querem espaço. Mas a gente confia na soberania de Deus.”


Texto originalmente publicado aqui

noticia por : UOL

sábado, 26, abril , 2025 01:59
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