Entre tanques e ditadores: o desvio moral da política externa do Brasil

A política internacional, por natureza, para além dos tratados, negociações e estratégias, é também constituída por uma complexa gramática de símbolos. Sua linguagem se expressa não apenas por palavras, mas, em grande medida, por gestos, imagens e escolhas performáticas.

Cada presença – ou ausência – em eventos internacionais, cada aperto de mão, cada lugar ocupado em cerimônias globais, é carregado de significados e comunica intenções, alianças, valores e até rupturas ao público externo e doméstico que ultrapassam os acordos e canais de negociação formais.

O comparecimento do presidente Lula às celebrações do “Dia da Vitória” em Moscou – evento instrumentalizado por Vladimir Putin para reforçar seu regime autoritário em meio à agressão russa contra a Ucrânia –, ao lado de diversos líderes de regimes autocráticos, ilustra com clareza o peso dessas escolhas simbólicas: o Brasil projetou à comunidade internacional uma imagem profundamente negativa e em desacordo não apenas com suas melhores tradições diplomáticas, mas completamente dissociadas do interesse nacional.

Na diplomacia, exemplos históricos ilustram como esses gestos podem ter impactos profundos. O aperto de mão entre Anwar Sadat e Menachem Begin, mediado por Jimmy Carter em Camp David, simbolizou um divisor de águas nas relações árabe-israelenses e produziu efeitos duradouros na política do Oriente Médio.

Da mesma forma, a ausência de líderes ocidentais em certos funerais de Estado ou boicotes esportivos – como os Jogos Olímpicos de Moscou em 1980 – funcionaram como sinais vigorosos de reprovação internacional e influenciaram equilíbrios geopolíticos.

Ao abandonar suas linhas mestras de moderação, respeito às normas internacionais e construção de pontes, a política externa brasileira deixa de ser instrumento de projeção positiva

O Brasil, por sua vez, sempre cultivou cuidadosamente essas dimensões, dos gestos de autonomia em relação às grandes potências na ONU ao ativismo por valores universais em conferências multilaterais.

Se é legítimo esperar que a política externa de um país busque o pragmatismo e mantenha canais de diálogo abertos mesmo com interlocutores controversos, convém lembrar que existe um marco civilizatório que não pode ser relativizado sem custos reputacionais e políticos.

No momento em que Lula – representando o único país supostamente democrático no evento – compartilha o palco com líderes de regimes autoritários e, publicamente, antagoniza o presidente dos Estados Unidos em discursos, implodiu o pouco que ainda restava da previsibilidade, da credibilidade e do prestígio internacional que a diplomacia brasileira levou décadas para construir.

Mais ainda, deixou novamente patente sua predileção pessoal por alinhamento incondicional a um campo cada vez mais isolado dos padrões democráticos e morais internacionais. De fato, Lula e seu chanceler paralelo de bolso, Celso Amorim, parecem se sentir muito à vontade em tais convescotes, sorrindo e festejando com a nata da ditadura mundial.

A mensagem transmitida, tanto ao Ocidente quanto ao Sul Global, foi clara: o Brasil parece disposto a flexibilizar – se não ignorar por completo – valores constitucionais como a defesa da autodeterminação dos povos, o respeito aos direitos humanos e a busca pacífica de soluções para controvérsias internacionais, em nome de parcerias conjunturais, motivações ideológicas e preferências pessoais.

Ao abandonar suas linhas mestras de moderação, respeito às normas internacionais e construção de pontes, a política externa brasileira deixa de ser instrumento de projeção positiva e perde margem de manobra na defesa dos interesses nacionais em um cenário global crescentemente competitivo e volátil, no que se configura não em mero erro tático, mas em desvio estratégico que compromete a autonomia e a confiabilidade que sempre distinguiram a atuação do Brasil no concerto das nações,

A política internacional é feita, em igual medida, de interesses, ações e símbolos. Ignorar a lógica e a gramática dessa linguagem é comprometer o futuro do país e sua posição no mundo.

A presença do presidente brasileiro na Praça Vermelha, ao lado de regimes que desafiam a ordem democrática internacional, simboliza um desvio moral e um retrocesso geopolítico do Brasil e será lembrada não pela promoção do pragmatismo e de um realismo propositivo, mas pela erosão dos princípios, da responsabilidade e do capital simbólico que sustentaram a diplomacia brasileira por gerações.

Marcos Degaut é Doutor em Segurança Internacional, Pesquisador Sênior na University of Central Florida (EUA), ex-Secretário Especial Adjunto de Assuntos Estratégicos da Presidência da República e Ex-Secretário de Produtos de Defesa do Ministério da Defesa 

noticia por : Gazeta do Povo

segunda-feira, 12, maio , 2025 07:05
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