Imagine país assim, imagine Justiça dessa

Imagine país fictício. País onde realismo fantástico ganha contorno de legalismo fantástico.

Lá, juiz decano da corte suprema é também empresário. Empresário do agro, empresário da educação, promoter e host de encontros multissetoriais da riqueza concentrada. Não reconhece conflitos de interesse quando julga caso da banca que remunera a esposa nem de patrocinador de sua empresa.

Ativista da política de nomeação para cargos judiciais e executivos, interlocutor partidário, amigo dos chefes de imprensa. Nenhuma das fontes geradoras de recursos de poder lhe escapa. Sem recato, ataca colega, ataca promotor, ataca legislador, ataca povos originários, ameaça ONGs, jornalistas e professores.

Organiza simpósios entre agentes políticos e econômicos do país hipotético. Simpósio, entenda bem, no sentido grego de “festejar junto”. Mas um festejar mais avacalhado e profano. Saem filosofia e poesia, entram magistocracia e oligarquia.

No banquete não tem Aristóteles nem Sófocles, não tem pergunta filosófica ou espiritual. Não há chistes contemplativos nem janela para humor inteligente e contra-hegemônico. Sobram impulsos espoliatórios e negociações extrativistas, inquietações desregulatórias e o fim de direitos trabalhistas. Permutas constitucionais em defesa do “interesse nacional”.

Desses simpósios participam quase todos os juízes de cortes superiores. Avessos à solidão, topam todo convite para comer com a advocacia que os paquera e para palestrar ao empreiteiro que estende a mão da amizade. Um campeonato de partidas e contrapartidas.

Muitos dos juízes têm parentes-advogados. Homens de família e de bens, lutam pelo sucesso de filhos e esposas. A ponto de tornarem difícil praticar advocacia sem que advogados plebeus façam “parcerias” com advogados do patriciado dinástico.

Até a confederação de futebol desse país quimérico se joga na rede desse influencer de toga, no sentido latino, pré-digital.

A mídia não se sente livre para tratar do assunto. Não se atreve nem a perguntar, que dirá investigar e criticar. Sua coragem se encerra num cochicho privado. Pois tem medo das consequências.

Tamanho poder vertical de intimidação e retaliação faz do juiz imaginário o jogador mais granular e eficaz do Estado.

Nesse país zombeteiro, há jurisprudência lotérica sobre honra e liberdade de expressão para cidadãos comuns. E existe jurisprudência segura e previsível sobre a honra do juiz ornitorrinco. Toda uma jurisprudência da honra para si. Jurisprudência de um homem só.

Se “jurisprudência lotérica” e “jurisprudência individual” soam oxímoros, bem-vindo às charadas desse Estado de Direito tropical, em que jornalistas não podem interpelar cúpulas magistocráticas por sua libertinagem. Uma zona pouco franca aonde liberdade de imprensa e liberdade acadêmica não têm autorização para chegar.

Porque a autoridade mais alta de proteção de direitos é a mesma que pode te assediar e punir. Por crítica objetiva e bem informada. Em língua culta.

E assim se faz a alquimia do legalismo fantástico: contra a lei, o maior operador da lei. De seu porrete se faz legalidade, dominação e silêncio.

Estamos em Magistocondo, cidade que García Márquez, tivesse mais preguiça e menos refino, poderia ter inventado: 500 Anos de Colusão (com pitadas de Acordão).


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noticia por : UOL

quarta-feira, 21, maio , 2025 12:27
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