Leitura aos dois anos e universidade aos oito: o mundo intenso das crianças prodígio

Sua vida tem sido curta, mas intensa. Com apenas um ano, já sabia o alfabeto e contar até três; aos dois, já lia. Aos cinco anos, resolvia problemas de álgebra e lia livros inteiros. A partir daí, avançou diretamente para o ensino médio, com o apoio do pai, Rafael, que, após perceber sua altíssima capacidade e sede de conhecimento, decidiu ensiná-la em casa, em um regime de estudos de oito horas diárias (das 8h às 16h), seis dias por semana.

Depois de concluir o ensino médio, o passo natural foi a universidade. Alisa, então com oito anos, queria ingressar na Universidade da Califórnia, onde reside. No entanto, especialistas recomendaram que ela começasse por uma instituição menor, como uma faculdade comunitária, a Crafton Hills College, já que nunca havia frequentado uma escola formal. Assim, uma garota americana percorreu, em tempo recorde, o trajeto educacional que a maioria das pessoas leva cerca de 20 anos para completar.

“São dez anos curtos, mas percorremos um longo caminho”, diz Rafael Perales, em entrevista à emissora norte-americana ABC.

Crianças prodígio: um conceito elástico

Alisa é considerada uma criança prodígio, ou superdotada — condição também conhecida como de altas habilidades. Trata-se de um fenômeno difícil de quantificar, padronizar e, muitas vezes, até mesmo de identificar em todo o mundo. Não existe uma definição universalmente aceita, e os métodos de avaliação, bem como os indicadores de superdotação, continuam a evoluir, tornando-se cada vez mais amplos e variados.

“A identificação não se limita ao QI (Quociente de Inteligência)”, explica o portal espanhol especializado Altas capacidades en mi aula (“Altas habilidades na minha sala de aula”). O site ressalta que hoje outros aspectos importantes também são considerados, “como capacidades destacadas em áreas de criatividade, raciocínio lógico ou liderança social”.

Uma referência adotada em muitos países é a definição da National Association for Gifted Children (Associação Nacional para Crianças Superdotadas), dos Estados Unidos, que caracteriza estudantes altamente superdotados como aqueles que demonstram — ou têm potencial para demonstrar — habilidades e talentos excepcionais em uma ou mais áreas de atividade ou conhecimento, quando comparados a pessoas de idades, experiências e origens semelhantes. A mesma associação sugere que um critério razoável para identificação seria considerar superdotadas as crianças que figuram entre os 10% com melhor desempenho em relação aos padrões nacionais e/ou locais.

Na prática, famílias, psicólogos, educadores e especialistas discordam — e também concordam — sobre quais seriam as principais características e “sinais de alerta” para identificar altas habilidades.

“Thiago começou a falar muito cedo… com um ano e meio já formava frases complexas e tinha um vocabulário bastante avançado”, conta Natascha Salvador, psicóloga venezuelano-espanhola e mãe de uma criança superdotada. Seu filho Thiago, hoje com 12 anos, tem um QI de 144, bem acima da média, que gira em torno de 100.

Para Natascha, o indício mais marcante foi perceber-se, aos quatro anos, conversando com o filho sobre questões existenciais: o que acontece após a morte e a existência ou não do céu como destino da alma. “Eles se interessam por temas mais abstratos e se relacionam mais facilmente com adultos”, afirma.

Entre o prazer, a “fúria para dominar” e a vontade de passar despercebidas

Alisa Perales estudou conteúdos complexos, como teoria dos conjuntos, durante seus cursos técnicos de matemática e ciências no Crafton Hills College. “É divertido para mim. É tão divertido quanto brincar ao ar livre, andar de bicicleta ou fazer qualquer outra coisa. Simplesmente gosto de aprender”, afirmou em reportagem sobre sua trajetória. É uma experiência semelhante à “sede infinita de conhecimento” que Natascha Salvador observa no filho Thiago, que quer entender e investigar tudo.

Talvez seja o que a psicóloga e professora norte-americana Ellen Winner chama de rage to master — expressão que pode ser traduzida como “fúria para dominar”. Para ela, esse seria o elemento determinante e identificador da superdotação em crianças. “Tudo o que a criança quer fazer o tempo todo é permanecer focada naquilo para o qual ela tem habilidades excepcionais”, afirmou, em entrevista ao programa CBS Sunday Morning.

No caso de Alisa, é aprender física e tecnologia; no de Thiago, ler sobre história e política mundial; já Soborno Bari, outro prodígio norte-americano, gosta de resolver problemas matemáticos e desafiar o próprio pai, que é matemático de profissão.

No entanto, o sucesso futuro das crianças prodígio não está garantido. Segundo Ellen Winner, muitas permanecem no domínio da habilidade já existente, mas não se transformam em adultos criadores de coisas novas. “Alguns brilhantes carecem de ambição. Alguns brilhantes não querem passar a vida trabalhando ou se ‘escravizando’ para alcançar a eminência”, observa o colunista do The New York Times David Brooks, em artigo intitulado “O que acontece com as crianças superdotadas“, no qual analisa estudos que acompanharam, desde a década de 1920, centenas de crianças com altas habilidades.

Um estudo de 2019, conduzido pelo pesquisador norte-americano Brian O. Bernstein, constatou que, de um universo de 677 pessoas que demonstraram habilidades precoces na infância, apenas 12% alcançaram destaque em suas carreiras antes dos 50 anos.

Por outro lado, especialistas concordam que muitas crianças superdotadas nunca chegam a ser identificadas. “O número de crianças com superdotação intelectual que passa despercebido é elevado”, conclui um estudo de 2011 dos cientistas espanhóis Adrián García Ron e José Sierra. Assim, não é possível determinar, estatisticamente, quantas delas existem na população mundial.

Entre os principais fatores que dificultam a identificação estão a falta de sensibilidade ou conhecimento por parte de pais e educadores — que, muitas vezes, interpretam erroneamente os sinais —, a ausência de acesso a serviços e ferramentas adequadas, especialmente em contextos de maior vulnerabilidade, e a insuficiente avaliação ativa por parte das autoridades educacionais.

Um desafio adicional, e não menos importante, é que mesmo após a identificação, muitas famílias encontram dificuldade em acessar serviços educacionais apropriados. “Poucas são as oportunidades educacionais oferecidas ao aluno com altas habilidades/superdotado para desenvolver de forma mais plena suas competências”, afirma a cartilha “Saberes e práticas da inclusão” (2006), da Secretaria de Educação Especial, do Ministério da Educação (MEC).

No Brasil, crianças superdotadas são legalmente consideradas público-alvo da educação especial e têm direito a atendimento especializado gratuito.

Caminhos solitários

Tecnicamente, com seus diplomas de nível superior, Alisa Perales, aos dez anos, já possui habilidades e conhecimentos suficientes para ingressar no mercado de trabalho. Mas como são, afinal, as trajetórias das crianças prodígio?

Tão variadas, únicas e não lineares quanto cada uma delas e suas respectivas áreas de talento. É comum que se entediem com os ritmos tradicionais das escolas, mas nem sempre frequentam instituições especializadas em altas habilidades. Muitos, como Thiago, na Espanha, permanecem em escolas comuns, mas contam com adaptações curriculares e programas extracurriculares que estimulam sua criatividade.

Se assim desejar, Thiago pode optar por abreviar seu percurso educacional por meio do que, na Espanha, é conhecido como flexibilização ou aceleração de graus, o que significa avançar rapidamente para níveis superiores e suprimir anos de escolaridade.

Foi o que fizeram Alisa Perales e Soborno Bari — que, aos sete anos, deu sua primeira aula universitária de matemática na Índia e, aos 12, ingressou na Universidade de Nova York (NYU). “Parece o próximo passo natural. A maioria dos jovens vai para a universidade ao concluir o ensino médio”, comenta Soborno, que planeja completar um doutorado antes dos 16 anos e, talvez, tornar-se professor universitário.

Na prática, o desenvolvimento dessas crianças ocorre em tempos paralelos, quase sempre “assíncronos” e solitários. “Emocionalmente, ainda são crianças”, lembra Natascha Salvador, que também destaca a sensação de incompreensão vivida por elas.

É difícil para esses jovens se integrarem entre os de sua idade, embora se identifiquem mais com adultos, já que seu desenvolvimento emocional não é tão precoce quanto o cognitivo. Isso as afasta de praticamente qualquer grupo. “Encontrar crianças para brincar é um desafio”, reconhece o pai de Alisa Perales.

Pronta para o mercado de trabalho ou para Stanford — mas não para votar

Após fazer um curso de ciências políticas no Crafton Hills College, Alisa decidiu entrar com uma ação judicial no estado da Califórnia para questionar a exigência constitucional de ter mais de 18 anos para votar. Seu argumento: se já atingiu o mesmo nível educacional que os jovens de 18 anos, também deveria poder votar.

É um ponto interessante: ela pode procurar e conseguir emprego, como qualquer adulto com diploma universitário, e, em tese, até praticar medicina, como fez Balamurali Ambati — oftalmologista indiano que se tornou médico aos 17 anos. Por que, então, não poderia escolher seus representantes?

Mas, como vimos, precocidade cognitiva não equivale, necessariamente, a maturidade e responsabilidade independentes. Essas crianças dependem, em grande medida, de seus pais ou responsáveis para zelar por seus interesses, representá-las e tomar decisões práticas da vida adulta que, para elas, chegam antes do tempo — como, por exemplo, onde e com quem viver enquanto frequentam a universidade, especialmente em países como Estados Unidos e Brasil, onde estudantes universitários frequentemente deixam a casa dos pais para morar no campus.

Além da discussão sobre qual seria a idade mínima razoável para a responsabilidade legal — 16, 18 ou 21 anos —, há decisões e direitos que pressupõem um elemento essencial: o passado. E se há algo que crianças e adolescentes, por definição, não possuem, é um passado longo.

Por isso, histórias de jovens com essas características, no gênero literário conhecido como Young Adult (jovem adulto, ou YA, na sigla em inglês), costumam ser contadas no tempo presente e na primeira pessoa do singular. Do contrário, teriam que ser narradas por outros, testemunhas vivas desde antes — e durante — a trajetória desses jovens.

A demanda de Alisa para poder votar não teve sucesso. Por enquanto, ela terá de se contentar com um destino, para muitos, igualmente desafiador: estudar em Stanford.

noticia por : Gazeta do Povo

domingo, 25, maio , 2025 05:25
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