Foram 184 pessoas mortas, 9.300 casas destruídas, outras 104 mil danificadas e um prejuízo estimado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento em quase R$ 90 bilhões com as enchentes do Rio Grande do Sul em 2024 —a maior tragédia da história do estado.
Mesmo assim, os gastos autorizados no Orçamento do governo federal para gestão de riscos e desastres diminuíram 73% do último ano para o atual.
Esse cenário ilustra um desafio que é também mundial: apesar do crescente interesse por uma economia sustentável, este movimento é puxado por investimentos em mitigação das mudanças climáticas e deixa para trás uma enorme lacuna na adaptação.
A primeira área tem como objetivo reduzir o impacto do aquecimento global, enquanto a segunda fornece os meios para tornar a vida na Terra mais resiliente a esses efeitos.
Mitigação engloba, por exemplo, diminuir a emissão de gases do efeito estufa ou ampliar a capacidade de absorção destes pelo reflorestamento.
Adaptação, por sua vez, investe em construir cidades mais resistentes aos eventos climáticos extremos ou evitar o desabastecimento de suprimentos básicos em decorrência desses episódios.
“O movimento de mudança na economia começou pela mitigação, e é absolutamente fundamental que continue. Mas em adaptação ele tem demorado mais”, diz à Folha Ana Toni, CEO da COP30 —a conferência sobre clima da ONU (Organização das Nações Unidas).
Globalmente, o déficit na destinação de recursos para adaptação é estimado em até US$ 359 bilhões (R$ 2,03 trilhões), segundo o Pnuma, o programa para meio ambiente da ONU.
Por outro lado, o Atlas de Desastres do Ministério do Desenvolvimento Regional mostra que o Brasil acumulou um prejuízo de R$ 432 bilhões com tragédias climáticas, entre 2014 e 2023.
A contradição está justamente no fato de que investir em adaptação é a principal forma de reduzir os custos com os eventos climáticos extremos. Um estudo do Instituto Talanoa —entidade brasileira focada em propor políticas públicas relacionadas à emergência climática— precifica essa economia.
Com base em projeções do Banco Mundial e da ONU, a instituição estima que investir R$ 100 bilhões em iniciativas de adaptação climática no Brasil até 2030 pode evitar R$ 1 trilhão em custos futuros com perdas e danos.
A realidade está bem distante: o investimento em soluções de resiliência não chegou a R$ 100 milhões em 2024.
Esse gargalo se dá por algumas razões. “Uma delas é que muita gente achou que tinha mais tempo para se adaptar”, afirma Ana Toni. “Na verdade, a ciência já nos mostrava isso, a gente não tem esse tempo.”
Além disso, investimentos nessa área são pulverizados, precisam ser projetados para responder às especificidades de cada região.
Por exemplo: uma empresa ou uma cidade do Sul do país precisará se adaptar para conviver com uma realidade de chuvas intensas e níveis de água mais altos. No Norte, por outro lado, a tendência é de agravamento de secas e aumento na incidência de incêndios.
Por ser regionalizado, o recurso também depende mais de políticas e interesses locais. A rede de investimentos em adaptação é, portanto, complexa e sofisticada, e seu crescimento mais demorado, como acrescenta Ana Toni.
Assim, esta área representa uma parcela pequena dentro da explosão do interesse econômico pela sustentabilidade em geral.
A Bloomberg Intelligence —serviço de análise de dados e inteligência para o mercado financeiro— projeta que os investimentos ESG (aqueles com critérios socioambientais e de governança) já mobilizam um terço dos ativos de todo o mundo e podem chegar a US$ 53 trilhões (quase R$ 300 trilhões) até o final do ano.
No Brasil, o Fundo Clima, que financia soluções ambientais, passou de R$ 634 milhões em 2023 para R$ 24,2 bilhões em 2025.
Já a primeira edição do Eco Invest, novo leilão do Tesouro Nacional que oferece linhas de “blended finance” —que combina recursos públicos e privados—, alavancou R$ 45 bilhões para projetos de sustentabilidade a partir de um aporte inicial de R$ 7 bilhões.
Por outro lado, nenhum projeto de adaptação foi apresentado nesta rodada inaugural do pregão, e apenas 0,06% dos empréstimos do Fundo Clima foram para iniciativas desta área, segundo o estudo do Instituto Talanoa.
“O paradoxo é claro: o setor privado brasileiro, embora exposto aos riscos climáticos, investe pouco em adaptação”, afirma o instituto.
A destinação de recursos para adaptação precisa deixar de ser encarado como gasto a fundo perdido, e passar a ser visto como um investimento que “alivia as contas e salva vidas”.
A expectativa do mercado, de ONGs e do governo é que a COP30, que acontecerá em Belém (PA), seja um marco de virada nesta percepção e possa consolidar o país como líder global em sustentabilidade.
A COP no Brasil tem como missão destravar o financiamento climático global e construir uma rota para que o mundo mobilize ao menos US$ 1,3 trilhão (R$ 7,3 trilhões) em recursos destinados a esta área até 2035.
Será também a primeira edição do evento desde que a Terra ultrapassou a marca de 1,5°C de temperatura acima do registrado na era pré-industrial —a última barreira, segundo cientistas, antes do mundo entrar em colapso ambiental, o que torna o tema ainda mais urgente e inadiável.
“Por isso, fica claro que a gente precisa avançar rapidamente no financiamento de adaptação”, completa Ana Toni.
Em nota, o Ministério do Desenvolvimento Regional afirmou que “a redução no orçamento de 2025 poderá ser superada via liberação de crédito extraordinário, caso seja necessário, em virtude dos fatores climáticos”.
Já a pasta do Meio Ambiente e Mudança do Clima diz que cuida dos programas Cidades Resilientes e AdaptaCidades, voltados para adaptação, e que o Plano Clima tem um pilar específico para o assunto, com estratégias setoriais para áreas como agricultura e pecuária, energia, indústria, saúde e gestão de riscos e desastres.
“[O ministério] é responsável por formular as políticas de enfrentamento à mudança do clima do Brasil, em articulação com demais pastas e órgãos do governo federal. O orçamento voltado à adaptação aos impactos do aquecimento global, portanto, concentra-se sobretudo no desenvolvimento dessas políticas”, diz, em nota.
O Ministério do Planejamento afirma que as decisões de alocação orçamentária levam em conta as necessidades de todos os ministérios, restrições fiscais e o cumprimento do arcabouço legal.
“[As decisões] são sempre tomadas de maneira colegiada, pela Junta de Execução Orçamentária, grupo formado pelos ministérios da Casa Civil, Fazenda, Planejamento e Gestão, ouvindo os diversos ministérios e órgãos do governo”, diz a pasta.
A Folha também procurou a Casa Civil, mas não houve resposta.
noticia por : UOL